Porque a realidade do subúrbio não tem que ser necessariamente má!

domingo, 23 de novembro de 2008

Dreyer: entre a palavra e o silêncio



Ordet é um filme de Dreyer de 1955 e narra uma história onde a fé nem sempre é concretizada na acção humana, onde os que se dizem crentes não crêem e os que crêem de facto são vistos como “loucos” ou demasiado “inocentes”.

Para Dreyer o olhar é o espelho da alma, o rosto ultrapassa a sua condição física e mostra as profundezas ocultas do ser humano, como o próprio aconselha: “Nunca devemos deixar de explorar o rosto humano, vê-lo animado do interior e transformando-se em poesia.”. Assim, por detrás dos rostos das personagens de Ordet encontra-se a sua chama, a sua palavra no íntimo do silêncio da alma e podemos desvelar as suas crenças. Borgen é luterano, Peter é chefe de uma seita evangélica, Mikkel é ateu, Anders é agnóstico e Inger pode ser vista como panteísta (já que o seu rosto se ilumina quando fala dos pequenos milagres ocultos da natureza). A crença (ou a falta dela) é aquilo que consola as almas destas personagens. Contudo, é também aquilo que as separa já que, acreditando que a natureza das suas crenças é diferente, as suas relações tornam-se quase impossíveis. O que Dreyer pretende com a denúncia destes pequenos conflitos (por exemplo, com a impossibilidade da união dos filhos de Borgen e Peter) é mostrar a sua falta de importância. Através da ironia mostra-nos que crer realmente, não pode ser um acto de separação, mas de união.

Contudo, aquilo que é mais importante neste filme é o combate (por vezes união) entre a palavra e o silêncio. A palavra é poder (que dá a vida), é afirmação e contradição, é profecia, união, vontade e fé. A palavra é a vida, o silêncio é a morte. Isto pode ser retratado pelo silenciar do relógio quando Inger morre. O silêncio é o fim do tempo devorador. Tudo se encontra nas palavras de Johannes quando este descreve Deus como “o homem da ampulheta”, cujo toque tem o poder de tudo silenciar.

Por outro lado, a palavra, para fazer sentido, também precisa do silêncio, senão cairia no abismo da loucura. Johannes é visto por todos como louco por falar de uma forma muito abstracta e profética (pensando que é Cristo). Contudo, após a sua fuga (depois da morte de Inger), após o seu silêncio ganha, de novo, a razão e a sua palavra profética volta a fazer sentido. Para além disto, quando a palavra é pura, quando é proferida por uma inocente como a pequena Maren, simboliza também poder. Poder esse que dá força a Johannes para ressuscitar Inger.

Este combate entre a palavra e o silêncio também pode ser visto no facto de todas as crenças das personagens terem por arma a palavra, arma essa que é silenciada nos actos, já que nenhuma delas introduz na sua conduta aquilo que proclama na teoria. Contudo, o silêncio também traz paz, já que é através da morte de Inger que todos se unem. O silêncio tem o poder de, através da sua opacidade, do seu vazio, acordar os surdos (que não ouvem por estarem imersos em demasiadas palavras). Por isto, o silêncio também é reflexão.

As duas personagens que reconciliam a palavra e o silêncio são Johannes e Maren, o louco e a criança. Unidos têm a força para levantar a impotência dos iludidos (ditos crentes) e realizar o milagre de trazer Inger de novo à vida: Maren através do silêncio do seu sorriso (que diz tudo) e Johannes através da sua palavra. Possuem em si o poder de transpor o significado críptico da palavra e acreditar realmente nela, como se fosse um ente vivo e também a força de sublimar o silêncio com o sorriso tão puro que cala a morte.

2 comentários:

South Side Missiles disse...

Adorei do que vi desse filme.Mas ainda adoro mais o comentário que aqui foi feito!Para a próxima vê lá se falas do olhar da Joana D'arc no filme "Paixão de Joana D'Arc" do Dreyer, assim fica contextualizado com as temáticas do Caspar Friedrich!Após o texto do Caspar, prometo falar do meu tão querido Rubens, colocando aqui fotos, que eu, "in loco" ,tirei aos seus maravilhosos quadros.
Beijocasssssssssss
Ps: BURN THE SYSTEM!

Predator disse...

hehe